O meu ex-colega e dinossáurio, Alvaro Sabbo. cavaleiro ilustre - no seu curriculum consta a participação em mais de 900, não é engano, novecentos concursos hípicos(em mais de setecentos classificado entre os três primeiros) - contou-me que, entre os muitos cavalos que conheceu e ensinou, houve um que sempre lembrará, pela memória que revelou.
Os cavalos, referiu-me, entre outras virtudes caracterizavam-se, sem excepção, pelo medo e pela memória. O medo, explicou-me, porque as centenas de cavalos que eram anualmente importados pelo ministério da defesa de então, provinham na sua maioria, da Argentina. Onde viviam e se reproduziam em plena liberdade na pampa imensa daquele pais. Quando chegavam a Portugal e os desembarcavam, tinham de os levar de noite, em grupo, enquadrados por cavaleiros militares, no maior silêncio possível, para o quartel de Mafra. Donde, após um período de adaptação às baias do quartel, eram distribuídos para os diversos regimentos de cavalaria de Portugal.
O meu antigo camarada do Colégio Militar, terminado o curso da escola de guerra de então, começou a sua carreira como aspirante num regimento de cavalaria de Lisboa: levantava-se muito cedo na casa de seus pais e apresentava-se ao serviço, todos os dias, pontualmente às oito da manhã. E, porque sempre chegava ao quartel com alguma antecedência, passava esse tempo observando os cavalos do regimento. Um dia reparou num cavalo do tipo "percheron", normalmente um cavalo possante, de pernas anteriores possantes, revestidas de muito pelo acima dos cascos. O cavalo agitava-se, os tratadores ainda não tinham comparecido. Vendo que o cavalo tinha sede e fome, deu-lhe água e ração. O cavalo agradeceu-lhe com o resmungo característico dos cavalos quando estão contentes com o trato que lhes prestam. O que depois repetiu muitas vezes, sempre que chegava ao regimento bastante cedo. Esse cavalo, já tinha o nome de Caneças, e o Sabbo, como é normal entre os que gostam de cavalos, tratava-o sempre pelo nome, quando lhe dava água e ração. E o cavalo sempre agradecia com o tal resmungo.
Passados os meses do seu tempo de aspirante, o Álvaro foi promovido e foi prestar serviço noutro quartel, continuando a sua carreira de oficial e de participante em concursos ´hípicos por todo o país e pelo estrangeiro.
Mais de dez anos depois, logo que promovido a capitão, foi destinado para outro quartel, na província. E, como lhe competia e cumpria com gosto, começou por passar revista à cavalariça. Encontrando um dos tratadores fez-lhe as perguntas da praxe, se havia problemas com alguns dos cavalos, quais era mansos, quais eram difíceis no trato. E o soldado com quem falava entre outros pormenores disse-lhe:
- Meu capitão, manso, manso é o Caneças...
- O Caneças? - disse o Álvaro, levantando a voz, admirado.
E o Caneças, numa baia a poucos metros de distância, respondeu de imediato, com o tal resmungo de alegria, ao reconhecer a voz de quem o tinha tratado tão bem, anos antes.
Esta é a memória que têm os cavalos, manifestando sempre quem lhes fez bem.
Ao contrário do que, com frequência, se verifica na espécie humana.
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