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quinta-feira, 15 de maio de 2014

Tretas


        Fascina-me embora termine por me aborrecer, um individuo que povoa tudo o que diz com tretas, Quando oiço um desses espécimenes do género humano, não resisto à tentação  de o analisar com imparcialidade, sem preconceitos, comparando-o com outras pessoas por mim conhecidas, também amantes de gabarolices. Em geral gostam de monopolizar a conversação, mostrando-se agastados se o impedem, de elevar a voz procurando abafar qualquer outra concorrente e gesticular com exuberância pretendendo realçar a importância pessoal nos factos ou acontecimentos apresentados.
         Há uns meses atrás, viajando de comboio para Lisboa, sentei-me,no lugar marcado no meu bilhete,  ao lado dum sujeito que se ocupava com um desses artefactos modernos com jogos mais ou menos complicados. Vestia fato e gravata, sapatos ponteagudos de polimento, a mão esquerda com anel de brazão, talvez de outo, a direita com uma ligadura no dedo anelar. Assim que abri um livro - sempre levo um livro quando viajo de comboio - fechou a cassete do jôgo e disse-me sem qualquer cerimónia:
                - Vejo que se interessa pela leitura. Eu sempre trago um livro mas hoje comprei esta cassete de jogos, foi uma encomenda do meu filho e  tenho a fraqueza da nada negar aos filhos, não sou como aqueles pais que tudo negam aos filhos, convencidos que negar todos os desejos aos filhos só lhes dá fortaleza de caracter, não sei se o senhor tem filhos mas eu acho que o melhor para eles é rédea curta,  poucas falas, mesada escassa e muita exigência, sim porque as raparigas e os rapazes se os deixamos fazer o que lhes apetece o mais certo é fazerem o que não nos agrada, um vizinho meu contou-me - aqui eu tentei atalhar a verborreia daquele sujeito:
                  - Olhe, se quer a minha opinião - mas ele, implacável, mais não me permitiu:
                  - Mas repare, o senhor pode ter outra opinião, o que lhe digo é que lá na minha casa aos filhos não permitimos certas liberdades nem discussões, se querem discutir, para isso é que andam no liceu, não nos cansamos de lhes lembrar quem lhes paga o sustento, a mesada e a escola somos nós os pais há muitos pais que deixam os filhos fazer o que querem e depois é o que se vê, não sei qual é a sua opinião, isto de criar os filhos é muito complicado, não sei quem foi que disse que um filho é uma doença para toda a vida, eu cá não, eu e a minha mulher já combinámos fazer o que achamos melhor um filho, como os pássaros quando saiam do ninho a vida  é lá com eles, mas enquanto estão na nossa casa, aí não, aí...- fiz mais uma tentava, tentando estancar aquela catadupa de tretas: abri de novo o livro que levava, esperando que ele compreendesse a mensagem indirecta. Mas não reagiu:
                 - Olhe, desculpe se o incomodo mas eu julgo que conversando é que as pessoas se entendem - e o homem confundindo conversa com monólogo, atalhou a minha tentativa e continuou:
                 - È que sabe, isto de ter filhos é muito complicado, começa com as gravidezes da mulher, depois os biberons,  as noites mal dormidas, o senhor nem imagina os trabalhos que nos dão os filhos - aqui não resisti e lembrei, suavemente:
                 - Acontece que nós temos quatro filhos...- e o indivíduo, com uma certa impaciência, mais não me deixou dizer:
                 - Ah! Têm quatro, isso é muito melhor que ter dois, como nós, com quatro os mais velhos já tiram quase todo o trabalho aos pais, agora, como nós, com um rapaz e uma rapariga, não queira saber, é de tal maneira que eu sempre procuro fazer horas extraordinárias no meu emprego, a minha mulher faz o mesmo e quando chegamos a casa a mulher que contratámos quando chegamos a casa os moços já jantaram e vão a caminho da cama...
                   - Desculpe tenho que ir lavar as mãos e beber um refresco...
            Felizmente que os comboios modernos têm bons WCs e carruagem restaurante.                        

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