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domingo, 29 de junho de 2014

Viagem de arca - 5 -

            O perfume de canforeira intensifica-se sempre que aparece um amigo antepassado, como acontece agora com a  presença do meu tio-avô João Ramos. Sorrimos um para o outro:
               - Viva tio-avô João! Parece-me que foi ontem que o vi na sua casa de Lagoa, vejo pelo seu sorriso que me reconheço, agora que tenho uma certa idade, como é costume dizer-se quando passámos dos cinquenta ou sessenta ou mais...
               - Ora viva, Albertinho, continuo a ver-te com sete anos comendo à nossa mesa naqueles tempos que lá passámos. Vejo-te aqui sentado nos meus joelhos, ouvindo as minhas malandrices, brejeirices como o teu pai lhes chamava.
                - Tio-avô Ramos diga-me lá uma das suas, que me ensinava...
                - Olha, vamos a ver se te lembras desta que também deves ter aprendido:
Sou soldado valoroso
Fui à guerra do Buçaco
Apanhei um tiro nas costas
Ainda cá tenho o buraco
                  - Só me lembrava que falava do buraco. E  tio-avô, do que nunca mais esqueci foi das queimaduras nas pernas. Enquanto eu comia uma papa de milho,  o prato estava afastado e fiz a asneira de puxar a toalha em vez de puxar o prato. Na mesma mesa a tua filha Neva estava fazendo fios de ovos deitando, por um funil, a gemada sobre o assucar em ponto, derretido, muito quente, num tacho aquecido por um daqueles antigos fogões a petróleo. Quando puxei a toalha, o fogão virou-se, o azeite do tacho derramou-se, veio por ali fora direito a mim...
                   - Sim! Sim! Com o susto atiraste-te   para trás, empurrando as costas da cadeira e por milagre o assucar derretido, quentíssimo, só te caiu nas pernas, ficaste de cama, com as pernas ligadas, durante uma semana...Penso que ainda lá tens as marcas!
                    - Foi assim mesmo, só me lembro de acordar espantado por ver as pernas entrouxadas de branco...Mas há uma coisa que lhe queria perguntar. Contavam na nossa família algumas das suas paródias e aventuras. E há uma, a de que o tio-avò Ramos tinha levado a Sevilha, uma récua de mulas para vender, é verdade?
                    - Já sei, já sei o que os marotos da minha família contavam lá por Portimão, sobre essa aventura. Vou contar-te: de facto levei umas dez mulas para Sevilha. Não foi pouco o trabalho, levá-las atreladas em fila atrás do carro de cavalos em que eu fui até ao barco em Vila Real de Santo António, essa foi a primeira parte, a menos dificultosa embora com algumas dificuldades e contratempos, durante os primeiros dois dias da aventura. Depois, desembarcadas as mulas em Ayamonte não queiras saber a papelada e as voltas e reviravoltas procurando e pedindo os favores de alguns amigos que ali conhecia e conseguindo por fim que a alfandega espanhola me deixasse embarcar as dez mulas no comboio. Os trabalhos continuaram porque, em Lepe, tivemos de mudar de comboio, mais papelada, mais barafunda com as mulas, que tivemos   eu e os dois homens que foram comigo, tínhamos que lavar,  escovar, dar ração e água às mulas, para não chegarem magras à feira de Sevilha. Por tudo isso, entrámos na feira, no meio dessa semana. Consegui vender as mulas a bom preço, o pior, esse foi o motivo da galhofa que os parentes lá de Portimão contavam, o pior foi que me meti a gozar a feira com alguns amigos meus conhecidos de Espanha, comezainas e copos, "tablaos", touradas, uma cigana que me seduziu bem bêbado, resultado: por lá ficaram as mulas e as pesetas que tinha. Imagino os pormenores que os meus parentes por lá contaram em Portimão. Mas eu também sei muitas deles, que não me interessa contar, o que lá vai, lá vai, aqui só há alegria, não existem ressentimentos, vinganças, críticas malévolas.
            - Obrigado por me contares essa aventura. Como ainda dizemos, o que se leva desta vida, são alguns prazeres inofensivos. O que eu continuo a sentir é um grande carinho por ti, nunca mais me esqueço os dias que passei na tua casa, enquanto a minha Mãe curava a tuberculose no Caramulo. Quando de novo te encontrar onde estás, decerto me farás rir tanto como quando eu tinha sete anos.
         O tio-avô João Ramo sorriu, sorriu, enquanto a sua imagem a pouco e pouco se desfazia, e o cheiro a cânfora quase desapareceu.                                 

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