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domingo, 6 de maio de 2012

Folhetim Sonho de sorte - 106 -

                                                                       XLVII


          Um mês depois da inauguração da central de méritos, o sistema de pagamentos e recebimentos a ela ligados continuavam bem aceites, constituindo um sucesso. Quase todos os colaboradores da FAP o aceitavam. Raro se via dinheiro nas mãos de alguém, dentro da fundação. Todos os colaboradores recebiam  os seus vencimentos por meio de cheques, servindo-se destes para obter créditos em méritos para as suas compras no restaurante ou nos pontos de venda da FAP. Muitos dos beneficiados aderiram ao sistema. Os pontos de venda em funcionamento - pão e derivados, talho, peixaria, frutas e legumes - registavam uma afluência inesperada, liquidando antes do previsto, quase todos os abastecimentos e obtendo lucros significativos. Preços baixos, quando comparados com o comércio local, permitiam prever amortizações rápidas dos investimentos.
            A central de méritos, no fim do mês, registava cerca de duzentas inscrições.

            A fundação inaugurou em Dezembro a confecção de vestuário diverso. A textil seria inaugurada em fins de Janeiro. Uma textil falida no vale  do Ave, fornecera todo o equipamento necessário, que permitiu montar em tempo "record" a fiação e a tecelagem. Com esta fábrica atingiram-se todos os objectivos previstos para a primeira fase dei investimentos da FAP.
            Em menos de dois anos a fundação beneficiava quase toda a população de vários concelhos da margem sul do Tejo, iniciando.se experiências semelhantes noutras zonas.
            Os pontos de venda, a fábrica de pão, a textil e a da confecção começaram a laborar em turnos.Projectavam-se ampliações a curto prazo.
            E a experiência do novo sistema sem dinheiro, revelava-se eficaz, entrando com facilidade inesperada nas hábitos da população.

             Num domingo ensolarado de Setembro de 1998, os Garcias e os Silvestres almoçavam juntos, na esplanada do restaurante habitual.Os filhos passavam a última semana de férias na casa de praia dos pais de  
Carlos.
                       - Amanhã comemoraremos dois anos de existência da FAP. Penso que estamos a entrar numa das chamadas crises de crescimento - disse Fernando.
             Laura, como Júlia, não tinha papas na língua. Senhora do seu nariz, por sinal bem bonito, aliava à beleza física uma desenvoltura e um desembaraço notáveis, na conversação. Com Júlia, formava um duo terrível nas discussões, muito unido, leal, persistente nas decisões e constante nas atitudes. Integravam com os maridos um quarteto de amigos que discutiam o que tinha de ser examinado, assanhavam-se se era oportuno e justificado, concordando ou não sempre que a razão a tanto os aconselhava. Sem rancores nem ressentimentos.
                        - Aqui  está o pessimista Fernando aproveitando mais uma crise - disse Laura sorrindo para os amigos.
                        - Não vejo mal em falar da crise de crescimento da FAP. Queres saber Laura, porque falo nisso?
                        - Retiro o pessimista e passo a ouvir.
                        - Sabes Laura, porque estou lembrando entes dois anos passados? Porque eu e a Júlia temos vivido em constante e progressiva euforia!
                        - Nós também. E tudo nasceu com aqueles vossos sonhos.
                        - Ainda te lembras Carlos, quando te falei do primeiro sonho, no café?
           Carlos ficou mais atento:
                        - Como seria possível esquecer-me? O maior mistério para mim, nos dias seguintes, não foi a sucessão dos prémios e de sorte nos jogos, a isso habituámo-nos, dois ou três meses  depois já encarávamos aquela sorte contínua com a mesma naturalidade que ter ar para respirar ou ver a noite suceder ao dia. Nos primeiros tempos da FAP, quando a Laura chegava a casa falava-me sempre dos aumentos enormes na conta bancaria da fundação. Mas no último ano essa revoada de sorte parecia-nos  tão natural que só por acaso falávamos nisso.
                        - Então qual foi o maior mistério para ti?
                        - Para mim e para a Laura foi o de não atinarmos com a razão porque foste tu, Fernando, só tu o escolhido, digamos o senhor eleito!
                        - Queres saber? Olha, eu e a Júlia fizemos essa pergunta muitas vezes um ao outro. Chegámos sempre â mesma resposta, à mesma conclusão: que fomos tocados por uma acaso, como fruto de acasos constantes foram os prémios e as vagas de sorte nos jogos.
                        - Oh Fernando, mas porquê só a ti e a mais ninguém?+
                        - Também nos perguntamos o mesmo, Talvez tenhamos uma resposta. Conheces alguém a quem saíu um prémio da lotaria e que o tenha oferecido por inteiro? Tu serias capaz? Pensando muito neste assunto fui especulando mais, de forma muito diferente. Estamos com o nosso cérebro cheio de ideias preconcebidas. Umas provenientes do que estudamos, outras provenientes do que passámos durante as nossas vidas, todas resultantes de experiências vividas. Porque não pensarmos que o acaso é uma noção diferente da que nos ensinaram? O contrário do acaso é a certeza, dizem os compêndios. Mas não haverá nada para além da certeza? Nada existirá para aquém do acaso? Nem pelo meio?
               Carlos não resistiu à ironia:
                        - Já cá faltava o poeta visionário.
                        - Seja poeta, seja visionário. Ninguém me pode suster a imaginação, ninguém me pode impedir de sonhar. Lembras-te que  naquela época, não aceitavas que o sonho se concretizasse, até dizias que aquele senhor do meu sonho era um torturador.
                        - É que eu sou, Fernando, como costuma dizer-se, mais pão, pão, queijo, queijo.
                        - Olha que nem só de pão e de queijo vive o homem.
                        - E a mulher - Laura refilou - sempre os homens à frente das mulheres, esquecendo-as. Tu permites isto, Júlia? - e Fernando atalhou:
                        - Sabes bem que eu não gosto de o fazer, gosto de colocar sempre a mulher ao lado do homem! E, Carlos, eu penso que homem vive de muito mais, vive muito mais através do seu pensamento, da sua imaginação, da sua fantasia, Esta, com frequência é muito mal tratada pelos senhores materialistas que, no fundo, pouco mais vêem mais do que aquilo que têem à frente dos olhos , não raparam ou , como tu, não querem reparar nos contormos, nas sombras, nem sequer imaginando perspectivas diferentes, só seguindo as direcções conhecidas. Não descendo até aos infernos, nem subindo às alturas a que a fantasia nos pode trasportar. Tu, que gostas tanto de analisar e referir as lições da história universal, não reparaste, não pensaste que, quando comentas um acontecimento passado, por não o teres vivido, por não haver ocorrido no teu tempo, a tua visão desse acontecimento nunca poderá reflectir a cem por cento, o que na realidade se passou?
(continua)
                   
                         

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