- Claro que isso é difícil. Todavia posso acreditar no que disseram os homens, desculpem-me, no que disseram as mulheres e os homens desse tempo.
- Ora, ora! Já tens lido quantas análises diferentes e contraditórias elaboradas por diversos historiadores, sobre a inquisição? Sobre qualquer guerra do passado? Acreditas nalguma? Nunca imaginaste, pela tua cabeça, o que na realidade poderá então ter-se passado?
- É diferente...
- Certo que é diferente, e ainda bem que vemos e nos apercebemos das diferenças. Grandes problemas surgem quando, por exemplo, se escolhe um livro para o ensino de crianças. O livro adoptado pode influenciá-las num ou noutro sentido. Estou a desviar-me do nosso assunto.
- Sim, sim. A razão de seres tu e só tu o escolhido. E a crise de crescimento da FAP.
Júlia, que seguia bem a conversa, interrompeu:
- Eu e o Fernando algumas vezes conversamos sobre isso. Pensamos que foi muito importante o nosso desprendimento, a nossa atitude de termos seguido a regra imposta de oferecermos tudo o que obtínhamos nos jogos. Acabámos por admitir o inverso. À pergunta que tu fizeste e que também fiz a mim própria, passei a responder "e porque não a mim?" Se alguém teria de ser escolhido, porque não poderia ser o Fernando o eleito? Porque teria de ser outro ou outra qualquer? Não foi mais que um acaso, aconteceu, e quando o acaso acontece, transforma-se em certeza.
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Quem ou o quê decide o acaso? É independente da pessoa, do lugar, do tempo. Parece ser imparcial, imprevisível e irreverente. Não escolhe os contemplados pelo sexo, situação social, formação. Será assim? Se é um ser superior que o decide, que conhece como nós e mais que nós, o passado, só ele conhecendo o futuro, longe estamos de poder conceber as suas razões. Só talvez por acaso!
LXVIII
Tinha visitado um parente que estava hospedado num hotel situado no Dafundo, zona de Lisboa onde estivera setenta anos antes. A minha turma do colégio fizera uma excursão e visita ao aquário montado no edifício mais conhecido daquela zona e onde terminava a linha dos carros eléctricos.
Depois da visita ao meu parente, decidi regressar, andando pelo trajecto da antiga linha dos "eléctricos", fazendo horas e criando apetite para o almoço.
Entrei no primeiro restaurante que encontrei aberto. Num mostrador frigorífico, expunham peixe fresco, aos clientes. O chefe dos empregados de mesa tomou nota da minha escolha - um belo robalo de quase quatrocentos gramas - e encaminhou-me par uma das poucas mesas vagas. Na mesa ao lado, dois casais conversavam animados, enquanto aguardavam o almoço escolhido. Via-se que eram amigos de longa data. Aparentando trinta e cinco a quarenta anos, eles vestindo sobriamente, elas sem arrebiques, só de alianças e colares simples, de cabelos penteados em ondeado suave, no mesmo estilo despretensioso. Trocavam ideias e pensamentos com a calma a que o saber consistente costuma induzir.
O meu parente, o Gabriel Morais, um primo em terceiro grau que vivia numa aldeia nos arredores de Coimbra, viera a Lisboa para, segundo me disse, tratar de vários assuntos, um entre eles relativo
à sua reforma. Coronel de cavalaria, com folha de serviços exemplar, onde se destacavam os nove anos de guerra colonial em Moçambique, chumbara no curso de promoção a general porque nesse curso, que frequentara pouco depois revolução de Abril, não se inibira de, numa das provas orais, manifestar a sua discordância relativamente à forma como os políticos haviam efectuado a descolonização. Nesse tempo, a democracia que se pretendia implantar no país, era densamente recheada de demagogia, de um patriotismo bacoco e de demonstrações hipócritas em defesa dos direitos do povo. Os espelhos da revolução deformavam as imagens da franqueza e da lealdade, se estas não apareciam acompanhadas da submissão aos ideais revolucionários decretados e em moda. Acabrunhado, pediu a passagem à reserva, reformando-se pouco tempo depois.
Nas minhas idas a Lisboa, gostava de o encontrar.Tinha uma habilidade natural para contar histórias, habilidade que lhe conhecia desde os nossos tempos da universidade. Conservava na memória inúmeros factos do seu passado, sempre relatando alguns quando nos encontrávamos, com uma densidade de pormenores ora dramáticos, ora recheados de humor . Nunca repetia uma relato, eu suspeitava por vezes, que ele os enriquecia com o que a sua imaginação lhe proporcionava no momento. Era um conversador inato e encantador, o que constituía uma das bases sólidas da nossa amizade. Eu procurava retribuir na mesma moeda mas devo reconhecer que ele sempre foi um conversador mais interessante, embora me diga muitas vezes, que por nada perderia os meus relatos da vida.
Havíamos combinado almoçar no restaurante onde me encontrava ("o primeiro que encontres na estrada da desaparecida linha dos eléctricos", tinha-me recomendado). Sendo, de forma alegre, pouco pontual, quando chegou, disse-me, como sempre me dizia quando se atrasava mais de um quarto de hora: "não há amizade que resista à pontualidade!". E eu respondi-lhe: "nem amizade que mate a fome!" - enquanto iniciava o ataque ao bom robalo grelhado.
Essas nossas duas frases provocaram o silêncio na mesa vizinha e olhares sorridentes dos dois casais ali sentados. Octogenários bem apresentados e com algum humor, são sempre bem aceites por qualquer público em qualquer lugar.
Não estando muito famintos, decidimos conversar:
- Gabriel, disseste-me que vieste cá para esclarecer um problema relacionado com a tua reforma. Mas não percebo porque trocaste o hotel no Chiado por este no Dafundo, tinhas também de visitar o aquário durante os três dias que vais aqui estar?
Fez-me sinal para baixar a voz:
- Repara na rapariga que está de costas para mim na mesa aqui ao lado. É uma das subdirectoras da fundação para ajuda ao povo. O marido é o tipo de casaco castanho e os outros são os directores.
- É a fundação que alguns jornais vêem referindo?
- Essa mesma.
- E porquê...
- Escuta, não acabei de contar-te. Vim a Lisboa porque respondi a um anúncio deles para um emprego ou antes, para uma ocupação , como eles insistem em chamar ao seu trabalho. No anúncio diziam que os candidatos poderiam ter qualquer idade acima dos dezoito...
- Custa-me a crer que te admitam.
- Pois olha, estive lá às onze horas, essa senhora fez-me uma entrevista muito curiosa...Uma das perguntas foi para saber qual foi o meu último emprego.
- E tu respondeste?
- Que estive empregado no Estado Português durante quarenta e cinco anos.
- Como reagiu ela à tua resposta?
- Ela disse-me que já sabiam que era um coronel reformado. Mas, para meu espanto, perguntou-me o que é que sei fazer. Em resposta disse-lhe que de inútil sei fazer muita coisa e que útil sei alguma coisa de mecânica e de electricidade, organizar um arquivo e outras "plaisanteries".
- Como reagiu ela às "plaisanteries"?
- Disse que ainda não precisavam dum professor de francês, talvez dentro de alguns quatro ou cinco anos. Que iriam admitir um bom mecânico para uma das sua fábricas, que se estivesse interessado talvez me pudessem contratar.
- Desembucha! Mais uma vez despertaste o meu interesse com as tuas histórias.
- Não! Acredita que não é uma história, ela esteve sempre muito séria durante a entrevista. No fim, quando me pôs, duma forma delicada, na rua, disse-me: depois lhe escreveremos senhor Gabriel Morais. Antes do fim desta semana o informaremos da nossa decisão". Como vês, não podia ter sido mais correcta.
(continua)
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