Falei com quatro operários da fábrica. A conclusão ali foi igual à que obtivera antes, na outra fábrica. Começou a roer-me a dúvida. Seria sempre assim, estaria toda aquela gente a participar na fundação sem questiúnculas, sem atritos, sem os problemas que sempre vira surgir em comunidades ou grupos muito menos numerosos? Resolvi qu teria de refinar os meus inquéritos, com perguntas mais embaraçosas, que provocassem reticências ou respostas evasivas, menos claras, mais suspeitas.
Resolvi regressar à FAP para almoçar e pensar noutra estratégia.
Escolhi o almoço levando-o numa bandeja para uma mesa onde se encontravam três colaboradores que conhecia como frequentadores do restaurante. Sentei-me e disse-lhes:
- Suponho que me conhecem, os senhores são colaboradores da FAP na distribuiçao?
Responderam-me que sim, um deles o mais velho acrescentou:
- Acertou, senhor doutor! Nós também sabemos o que faz na FAP.
Desde que iniciara a minha tarefa, seguia a praxe: durante as refeições não entabular conversas relacionadas com as actividades da fundação. Aliás sempre encontrava outros temas interessantes para discutir, para pesquisar ou sondar nos companheiros que ocupavam comigo a mesma mesa. Por vezes, para desanuviar o ambiente, eu iniciava a conversa referindo um assunto que julgava provocatório. Com menor frequência, um deles, o que respondia ou comentava, referia um episódio da sua vida, contava uma anedota.
- Li um dos seus livros, um livro de contos que escreveu há pouco tempo e que tem algumas histórias que fizeram rir bastante. Peguei no fio à meada:
- Espero que o livro não lhe tenha só provocado o riso...
- Não, doutor. O primeiro conto fez chorar a minha mulher, o pai dela passou por uma experiência semelhante, também era cocheiro e também limpava pipas vazias. Ela uma vez entrou dentro duma pipa vazia e quando o pai a tirou de lá, saíu com uma grande bebedeira. Ainda hoje, a minha mãe, quando conta a história, diz sempre que a única bebedeira que apanhou foi sem beber uma gora de vinho.
- A sua esposa com cereza conta muitas histórias aos filhos...
- Conta, claro que conta! Temos dois filhos crescidotes, ele com treze e ela con onze anos. Como todos os miúdos, gostam muito de contos...
- O seu sogro ainda é vivo?
- É, brinca muito com os netos, aguenta-lhes, sempre sorrindo, as piadas ou brejeirices que lhe dizem. Sempre que vem para a mesa muio alegre, um deles, não falha, pergunta-lhe: "Oh avô? Saíste agora da pipa?
Todos, durante o almoço, recordámos pedaços das nossas vidas.
Depois de registarmos em débito, os méritos relativos às nossas despesas, disse-lhes, à saída:
- Suponho que esta tarde a vossa tarefa será entregar ofertas, gostaria de vos acompanhar.
- Não há qualquer inconveniente, doutor. Quando chegarmos à nossa zona poderá seguir comigo ou com um deles - disse o mais velho, o Roberto.
No parque de estacionamento encontrei o Fernando:
- Doutor, venha comigo, vou para os pontos de venda, deixo-o com o Roberto quando chegarmos a Almada. Venha comigo preciso falar-lhe.
Fernando, que conduzia um automóvel eléctrico, mal arrancou disse-me:
- Temo-nos desencontrado, há alguns dias que o procurava para o convidar a jantar connoscol. Temos de conversar um pouco sobre a FAP, poderá ser hoje?
- Não tenho nada combinado, agradeço e aceito com gosto o convite. Ainda não nos foi possível falarmos em sossego. A doutora Júlia não se importará que falemos sobre a fundajção durante o jantar?
- Falei om ela, tem ainda mais interesse que eu na sua presença.
- Deixa-me preocupado e curioso. Não poderá dizer-me...
- Muito simples, doutor. Procuramos uma pessoa de confiança para a administração. Por anúncio e por entrevista parece-nos muito difícil escolher bem. Porque o doutor conhece tanta gente e sabe avaliar o carácter das pessoas com que comunica, vamos pedir-lhe q sua ajuda. Mas...Estamos chegando, estou um pouco atrasado. Quando regressar à FAP, eu e a Júlis esperamo-lo no meu gabinete.
Fernando deixou-me no parque de estacionamento dos pontos de vendas e junto ao automóvel donde saíam Roberto e os outros distribuidores.
- Vou a pé para a minha zona, aqui perto, a cinco minutos de camino.
- Roberto, hoje vou consigo, noutro dia irei com os seus companheiros.
Depois de caminharmos um pouco, em silêncio, Roberto apontou para a rua onde entrávamos e parou, dizendo::
- Esta foi a primeira rua onde fizemos a distribuição. Desde então, passados mais de dois anos, já morrerram alguns dos beneficiados, outros saíram para Lisboa ou outras cidades, outros, pena que muito poucos, encontraram quem os empregasse. Também alguns na zona, por desemprego ou por outras causas, começaram desde há menos tempo a ser benficiados pela FAP. Anslisamos caso a caso.
- Já sei, explicaram-me na administração como controlam as ofertas de forma a não beneficiarem quem não o merece ou quem vos engane. Mas, simples curiosidade, na prática. conseguem-no?
- A cem por cento não é possível, mas creia que o auxílio que esta gente nos presta nesse sentido tem constituido a maior contrariedade para os que nos querem enganar. Possigamos, aqui vive a primeira senhora a quem vamos entregar o cheque mensal.
Abriu a porta da casa uma mulher aparentando cinquenta a cinquenta e cinco anos, de feições angulosas, morena, de cabelo farto, muito grisalho e bem penteado. Roberto, parecendo surpreendido, depois de verificar o número da porta falou para a mulher:
- Boa tarde. Minha senhora, não vive aqui a senhora Maria Augusta?
. Vive! Vive! Mas hoje está com uma gripe... Eu sou uma amiga dela, vivo ambém nestavrua, eu vou ver se ela pode vir aqui.
(continua)
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