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segunda-feira, 14 de maio de 2012

Folhetim - Sonho de sorte - 114 -

                      No regresso à FAP, comentaram a visita ao palácio de Belem:
                                   - Parece-me que devia ter falado em dez milhões  de contos não só de um.
                                   - Fizeste bem - disse Júlia olhando para a sua imagem reflectida no espelho do para-sol e dando um arranjo no cabelo - vi que o presideente leu muito do que lhe enviãmos dentro daquela pasta.
                                   - Até hoje ainda não o conhecíamos. Num frente a frente ficamos sempre com uma ideia mais correcta da que obtemos nos media ou da que nos impinge a publicidade. Pareceu-me que o presidente não é propenso a promessas falsas.
                                   - Agora temos de pensar bem no programa para a visita nos fará. Não te esqueças que depois de amanhã, temos o convite do ministro dos assuntos sociais.
                                   - O governo vai reagindo, há alguns meses foi um director de serviços, agora subimos até ao ministro...Acontecimentos estranhos desta vida, Júlia!...
                                   - Congratulo-me, marido, que se faça luz em mentes tortuosas.

                   Fernando conheera vinte e dois anos antes o ministro. Êste deseempenhava então as funções de secretário geral do governo de Moçambique. Alto, louro, de corpo magro, esguio. Manifestara então, no trato e em vários despachos, carácter seremo, honesto, incorruptível, actuando com entusiasmo e decisão no cumprimento das reformas em curso,
                   Convocados para o ministério na primeira sexta-feira do mês seguinte, fizeram-se anunciar à hora marcada. Ao entraar no gabinete, o ministro, olhando para Fernando, disse-lhe:
                                  - Já nos conhecemos em Moçambique, engemheiro Garcia!
                                  - É verdade, senhor ministro, mas ainda não conhece Júlia, a minha esposa.
                                  - Muito prazer doutora Júlia Garcia, o seu marido participou muito bem naquela luta contra os concessionários do arroz! Agora tive a satisfação de conhecer o bom trabalho que, consigo,  vem desenvolvendo na fundação.
                                  - Para nós não é um trabalho, temos sempre o gosto de frisar que é uma ocupação e não um trabalho, no sentido  que  é uso atribuir a essa palavra.
                                  - Bem - disse o ministro - queiram sentar-se e falar-me um pouco da fundação. As notícias que tenho e o "dossier" que entregaram ao director de serviços que vos visitou, levantaram-me algumas dúvidas. As relativas ao financiamento que obtêem, estão esclarecidas. Porém tenho outras, versando a vossa acção sobre as populações que vivem na margem sul do Tejo.
                    O ministro mudara muito no físico. Engordara bastante, uma palidez intensa na face, rouquidão na fala e forte curvatura da espinha, faziam adivinhar muitos anos passados sentado à secretária e saúde precária. Era hipocondríaco, não resistindo falar da doença que o aingia ou atormentava. Mal nos viu sentados comentou:
                                   - Meus caros, esta doença que me arrasa, tem-me impedido  de vos visitar como há muito derejo - disse o mnistro após violento acesso de tosse.
                   Lembrei-me de algumas reuniões interminãveis. em Moçambique, metade ocupadas com as doenças imaginárias, quase a outra metade com história antiga e apenas os últimos cinco minutos, com os temas da agenda. Manda a diplomacia não contrariar um doente imaginário nem impedir que um ninistro contador de histórias exiba so seus profundos conhecimentos sobre o que não nos interesse ouvir. Fernando tentou atalhar:
                                  - Senhor miinistro, se puder aceitar o nosso convite, vossa excelência ajuizará muito melhor a obra que a fundação para ajuda ao povo vem executando desde Outubro de mil novecentos e noventa e seis.
                    O ministro fungou duas ou três vezes, assoou-se  bem e disse, de forma severa:
                                  - No final da vossa visita trataremos disso. Falem-me agora da vossa acção sobre o povo dos concelhos onde vêem actuando.
                    Júlia sorriu e respondeu, consultando uma pasta:
                                  - Senhor ministro, foram beneficiadas pela fundação cerca de quinze mil pessoas. Esse benefício traduziu-se de início em simples ajudas monetárias e, a partir do ano seguinte, por outras ajudas. Uma delas, a venda com preços baixos de alguns géneros produzidos nas fábricas que a fundação erigiu e tem a funcionar. A fundação ainda trouxe algumas outras vantagens para a população das autarquias onde os nossos colaboradores actuam.
                     O ministro folheando um pouco a sua agenda, comentou:
                                  - Lembro-me que quando cheguei a Moçambique, o governador geral pediu-me que me encarregasse das condições de vida das populações do norte da colónia. Não sei se  a doutora esteve em Moçambique. Nessa época o seu marido, que muito lá trabalhou, contou-lhe decerto...
                     Lá vinha a história antiga, pensou Fernando, tinha de atalhar aquela verborreia, que adivinhava interminável. O ministro, como dantes, adoptava a táctica usual: não interrompia o discurso dando a deixa ao interlocutor, enriquecia o palavreado escolhendo frases simpáticas para desarmar o ouvinte, fazendo-o desistir de propõr variantes à conversa. E continuou:
                                   - Contou-lhe que também lá se dedicou ao povo? Lembra-se engenheiro Garcia da reacção do governador geral depois de ler o seu relatório?
                     Júlia não se conteve:
                                   - Senhor ministro, desculpe-me...
                      E aí, o ministro interrompeu Júlia com a frase sacramental:
                                   - Não demoro nada, só um minuto, permita-me, referia-me ao bom trabalho do seu marido na colõnia, o governador geral, como ia dizendo, até o elogiou e encomendou-lhe...
                      Nova interrupção de Júlia, dizendo, como se não tivesse ouvido a última frase do ministro:
                                   - Senhor mininstro - e êste fitou-a atónito - fomos convidados pelo senhor presidente da república, na passada terça-feira. Prometeu-nos falar com o primeiro ministro no sentido de que seja concedida à fundação uma dotaçãop anual de um milhão de contos. Estamos aqui para lhe pedir o seu apoio, pelo que temos muito interesse na sua visita.
                      O ministro, conhecido como homem arguto, sensato e ponderado, não deu mostras  de azedume e respondeu:
                                    - Na pròxima reunião do conselho de ministros referirei o vosso pedido.
                                    - Nós, em nome da fundação, há alguns dias enviámos-lhe um convite, não recebemos qualquer resposta, é natural que tenha a agenda cheia.
                      O secretário do ministro entrou, disse-lhe em surdina algumas palavras. O ministro levantou-se, guardou a agenda na pasta e disse:
                                     - Brevemente oe informarei sobre a visita que farei â  vossa obra, agradeço a vossa presença e espero que em breve nos encontremos de novo - e o ministro despediu-se de Júlia e de Fernando, acompanhando-os até à saida do seu gabinete.

                       No regresso à FAP comentaram a visita ao ministro:
                                      - Por pouco não me desmanchava a rir com a conversa do ministro!
                                      - E eu, Júlia, que lá em Moçambique o aturei com cada seca! Fiquei muito preocupado quando tu o interrompeste mal ele tinha começada com a história das nossas epopeias em África...
                                      - Mas Fernando, no fundo fiquei com boa impressão dele, não demonstrou nenhum azedume, convenci-me que vai ajudar-nos e ajudar a fundação.
                                      - Sim, agora recordo que em Moçambique toda a gente falava bem dele.


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                    A direcção da FAP ainda não divulgara bem a sua actividade. Nem sempre um ministro actua de acordo com as informações oficiais que lhe apresentam em cima da secretária. Se não contêem pareceres vigorosos que justifiquem e apoiem com veemência as propostas apresentadas, se não estão de acordo com os interesses políticos do seu programa, utiliza o tipo de despacho do género "ciente" ou "aguarde-se", ou ainda ambos os termos, protelando a decisão para as calendas portuguesas mais adiadas que as gregas. Júlia e Fernando sentiam os benefícios que a FAP trouxera às populações da região, sentiam o aumento constante de felicidade pessoal. Deixara de haver surpresa nas notícias e reportagens inseridas em jornais e revistas, nem no afluxo crescente de cidadãos que entravam na fundação para agradecerem o que haviam recebido.
(continua)

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