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terça-feira, 8 de maio de 2012

Folhetim - Sonho de sorte - 108 -

                           - Tu vais aceitar o emprego se te convidarem?
                           - Porque não, admiras-te? Ou julgas que não sei apertar porcas e parafusos?
                           - O bom mecânico que eles necessitam, decerto não será só para isso!                                                                                 ,                          - Olha, o mato e a guerra são duas boas escolas, Nessas universidades, tiramos um rôr de mestrados de várias profissões, com teoria e práticas diárias. De todas elas, a que mais me desgostou foi a de aprender a matar.
                           - Gabriel, és como eu um octogenário ilustre e decente, mas octogenário!
              O Morais esquecera-se dos vizinhos, na mesa ao lado. Empregava-se com entusiasmo a uma das actividades que mais apreciava, a polémica.
                           - E depois? Não me encontras em condições de trabalhar ou, como eles dizem, de me aplicar numa ocupação útil? Não vou fazer exercícios de barras paralelas , nem saltar à vara, o que não sei nem me interessa fazer! O que podes ter a certeza, como esta senhora da entrevista entendeu, é que se eu  não for capaz de fazer o que me pedem, desisto nesse dia. Ah! é verdade, a senhora foi muito leal e correcta.
                           - Porquê, disse-te que não gostava do teu bigode?
                           - Por acaso perguntou-me se este bigode é para durar. Mas eu percebi muito bem a intenção da pergunta, uma das primeiras que fez. Foi para desanuviar o ambiente, para me descontrair.
                           - Ela ainda não te conhecia...
                           - Perguntas desse género fazem parte de todas as boas entrevistas para empregos, também as fiz, entrevistei muita gente.
                 Os clientes vizinhos levantavam-se e despediam-se do empregado de mesa que os atendera. Uma das senhoras, ao passar por nós disse - bom proveito senhor Gabriel Morais! - E o Gabriel, surpreendido, agradeceu, levantando-se e fazendo uma vénia. E eu comentei, quando nos preparámos  para tomar o café.
                           - Será que me engano? Lá diz o povo, mais vale cair em graça do que ser engraçado...
                           - Se calhar estás enganado. Como sou muito curioso, antes da entrevista procurei saber, ter algumas informações sobre a empresa e sobre quem me iria entrevistar.
                           - Essas reminiscências pidescas...
                            - Claro que me ficaram essas reminiscências, que raio de nome que lhes pões, enfim,  lembranças da pide e dos tempos passados em Moçambique.
                            - Diz lá o que soubeste, estás, como de costume, a enriquecer a história com os contornos dourados do preâmbulo.
                            - Tu é que me provocaste. Continuando, comecei a ficar admirado quando, pelo telefone, perguntei quem me iria entrevistar. O homem que me atendeu, respondeu-me que seria a subdirectora Laura. Perguntei-lhe ainda quem me poderia informar sobre a fundação e disse-me que, antes da entrevista poderia saber tudo o que desejasse e até, pasma-te, quais as perguntas que a subdirectora me iria fazer! Hoje de manhã, às oito e meia, a entrevista estava marcada para as nove, lá estava eu. Emprestaram-me um volumoso "dossier" onde  referem a história e os objectivos da fundação, onde descrevem com bastantes pormenores todos os investimentos realizados, os objectivos futuros. Num folheto   aparte  que me foi oferecido, relatam os pontos da entrevista e até a colaboração que esperam da parte do entrevistado!
                            - Na realidade, sem te conhecerem...
                            - Estás enganado. O que a subdirectora me disse, antes de fazer a primeira pergunta, foi que conhecia o meu "curriculum", que antes de me convocar se havia informado a meu respeito. Que a inexistência de quaisquer segredos é uma norma que se cumpre na fundação, sem reticências.
                            - E tu, não perguntaste nada?
                            - Fiz diversas perguntas, durante cinco minutos antes da  entrevista, a todas me respondeu sem hesitações. Vieram depois as perguntas dela. Se eu me alongava demasiado ou se me desviava da questão, chamava-me à pedra com delicadeza. Em pouco tempo terminámos. Para se despedir, disse-me que dentro em breve me informaria da decisão, convidando-me para um café e oferecendo-me, à saída, uma gravação com cópia de toda a entrevista!



                                                                  XLIX

             Espicaçado pela curiosidade que o Gabriel me provocara, procurei esclarecer-me nos dias seguintes. Confesso que tinha formado um juizo  bastante imperfeito sobre fundações. Sempre que me falavam nalguma, pensava que se trataria de uma instituição  destinada a colecções de arte, de uma organização de beneficência ou duma iniciativa de algum político para camuflagem de desígnios mais ou menos respeitáveis. Telefonei a um conhecido meu, o Nobre Gonçalves, que se mantinha na profissão de redactor activo e sério dum jornal do Porto e que por vezes me facultara informações úteis.
                         - Meu filho - o Nobre tinha menos dois anos que eu, mas todos os amigos eram promovidos a seus filhos - continuas um traidor. se comprasses mais o jornal que publica as minhas prosas dignas de um Nobel, conhecerias quase tudo sobre essa fundação. Pelo correio mando-te hoje o exemplar que traz publicada a entrevista que essa fundação concedeu ao director do jornal, o José Marques, há uns meses atrás.
             O que li naquele artigo , um editorial publicado no lugar de honra do jornal, provocou-me o desejo de conhecer a fundação.
             Quando me despedia do Gabriel, disse-lhe:
                         - Se fores convocado para trabalhar na fundação, telefona-me. Se não te importas, irei lá contigo.
                         - Também queres um emprego?
                         - Não, bem sabes porquê. Depois de ler o editorial que me enviaram, fiquei cheio de curiosidade por tudo o que eles fazem. Segundo apregoam não têm segredos para ninguém, vou contigo, sabes como gosto de provar pratos exóticos, desconhecidos.
              Regressei aos meus afazeres habituais, O director da editora que me aprovara o esqueleto do próximo romance, telefonou-me pela terceira vez. Em resposta, disse-lhe que não me telefonasse mais, só escreveria quando me desse na veneta ou seja quando a imaginação e a vontade me bafejassem. O senhor não reagiu nem voltou a telefonar, o que teve a boa consequência de libertar o meu espírito de qualquer remorso.
(continua)    
           

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