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segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

sonho de sorte - 7

Em Luanda, Júlia, com três anos de idade, frequentou uma escola que seguia o método Montessori. Passados três meses já lia e compreendia o que lia, demonstrando-o com as histórias aprendidas e que em casa contava aos pais e aos dois irmão mais velhos. Em 1975, pouco antes da independência de Angola, os pais de Júlia, trabalhando num banco de Luanda, regressaram a Portugal, transferidos para a filial do mesmo banco, em Portalegre. Júlia, com sete anos de idade, passou a frequentar uma escola primária oficial naquela cidade, dirigida por dona Celeste, professora muito exigente, disciplinadors, rígida, ocultando uma bondade natural e um carinho enorme pelas crianças. De quarenta e um anos de idade, feições austeras muito devidas ao aborto a que se submetera e que conseguia manter secreto, dona Celeste exibia um ar tristonho, melancólico por vezes, numa amargura justificada pelos namoros traiçoeiros.
Naqueles tempos, uma professora de instrução primária em escola oficial, que engravidasse sem casar, conhecido o aborto, não se livrava do despedimento. O Estado Nôvo e os costumes antigos não admitiam tais exemplos. Dona Celeste, no entanto, conservara o instinto maternal, traduzido num carinho e atenção permanentes sobre as crianças, que disfarçava com modos rudes, secos e severos. Era uma professora exemplar, o que demonstrava continuamente no ensino, sempre baseado em contos, histórias ou fábulas, quer se tratasse gramática, de matemática ou ciências.
Júlia, munida das boas bases da escola primária, passou os sete anos do liceu "com uma perna às costas", como era costume dizer-se. Admitida na faculdade de economia de Lisboa, compriu os cinco anos do curso com as melhores classificações, culminando-o com uma tese de doutoramento em 1997. Ainda foi convidada para assistente mas, já casada com Fernando, preferiu o emprego na fábrica onde o marido trabalhava, aceitando o convite irrecusável, pelas boas condições que o doutor Fonseca, o accionista principal e director, lhe ofereceu.

Carlos Azevedo, formado e doutorado em economia, nascido em Maio de 1967 em Évora. Com um metro e setenta de altura, magro, de físico bem constituido, cabelo farto e negro, um pouco grisalho aos lados, da cara rapada, olhos castanhos e brilhantes, maçãs do rosto salientes, nariz um pouco adunco, lábios finos e queixo proeminente. De andar firme, voz forte, bem dominada e treinada por quatro anos de professorado, na faculdade, após o doutoramento. Vestindo de modo simples, calças, camisa e pulôver, poucas vezes exibia casco e gravata. Simpático, agradável, fino na conversação, judicioso, calmo e ponderado na polémica, era o maior amigo de Fernando, numa amizade posta muitas vezes à prova nas situações onde mais difícil é ser-se amigo, mais fácil esquecer a amizade.
A tarefa do doutoramento em economia, ligada à antiguidade clássica, deixara-lhe gosto intenso pela história, o que constituia alternativa e entretenimento para os tempos livres. No escritório, Carlos recheou as prateleiras de uma das paredes, com livros de história. Ilustrava com muita frequência as conversas, narrando factos ocorridos em tempos antigos, alguns inventados, outros resultantes de pequenas ocorrências em épocas passadas. E que enriquecia com pompa caricata quando se tratava duma impostura atrevida ou adornava em português vernáculo, se referia uma história picante.

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